Que Horas Ela Volta?

Que Horas Ela Volta?

O filme estrelado por Regina Casé nos confronta com um retrato íntimo e, por vezes, doloroso das entranhas da sociedade brasileira, onde as linhas tênues da desigualdade se manifestam nos lares e nas relações cotidianas. A história de Val, a dedicada empregada doméstica que se sente quase parte da família de seus patrões, mas cuja filha, Jéssica, chega para expor as fissuras profundas dessa "familiaridade", ecoa de maneira incômoda em nossa própria realidade. O filme, com sua aparente leveza, nos força a encarar as hierarquias invisíveis que estruturam nosso convívio e a refletir sobre os privilégios e as invisibilidades que nos cercam.

Assim como Val transita pelos espaços da casa de seus patrões com uma naturalidade construída ao longo de anos de serviço, muitas vezes naturalizamos as relações desiguais que presenciamos ou até mesmo vivenciamos. A cordialidade e o afeto podem coexistir com a exploração e a falta de reconhecimento do outro como indivíduo pleno. Quantas vezes, em nossas próprias vidas, reproduzimos, mesmo que inconscientemente, as barreiras sociais que separam "empregados" e "empregadores", "superiores" e "inferiores"? O filme nos cutuca para observarmos as pequenas concessões e os grandes abismos que marcam essas interações.

A chegada de Jéssica, com sua postura assertiva e sua recusa em aceitar as regras tácitas da casa, funciona como um catalisador. Sua presença desestabiliza o frágil equilíbrio mantido pela resignação de Val e pela condescendência dos patrões. Na vida real, são também as novas gerações, as vozes dissonantes, os movimentos sociais que, ao questionarem o status quo, nos obrigam a confrontar as injustiças naturalizadas. A reação dos patrões à ousadia de Jéssica – o desconforto, a tentativa de enquadramento, a sutil exclusão – espelha a resistência que frequentemente encontramos quando desafiamos as estruturas de poder estabelecidas.

A piscina, símbolo de lazer e privilégio, torna-se um palco central dessa tensão. A proibição imposta a Jéssica de usufruir do mesmo espaço que o filho dos patrões escancara a divisão de mundos que coexistem sob o mesmo teto. Esse microcosmo da casa burguesa reflete a macroestrutura de uma sociedade onde o acesso a oportunidades e direitos é profundamente desigual. Quantas "piscinas" simbólicas existem em nossa sociedade, espaços e recursos que são naturalmente acessíveis a alguns, mas sumariamente negados a outros, baseados em classe, raça ou origem?

"Que Horas Ela Volta?" nos convida a olhar para além da superfície das relações, a escutar as vozes que são frequentemente silenciadas e a reconhecer a humanidade plena em cada indivíduo, independentemente de sua posição social ou da função que desempenha. O filme nos lembra que a verdadeira família se constrói sobre o respeito, a igualdade e o reconhecimento mútuo, e que a persistência das desigualdades é uma responsabilidade coletiva que exige reflexão, questionamento e, acima de tudo, ação. Assim como Jéssica, somos chamados a romper as barreiras invisíveis e a construir um Brasil onde o direito de voltar seja o mesmo para todos, sem hierarquias de acesso ou de valor.

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